terça-feira, 6 de outubro de 2015

A boneca de pano Emília


A boneca de pano Emília – tagarela, curiosa e egoísta, também conhecida como Marquesa de Rabicó – nasceu das mãos de Tia Nastácia.
Com retalhos de uma saia velha, a cozinheira fez uma bonequinha de corpo desajeitado, com olhos de retrós preto, sobrancelhas meio fora do lugar e recheio de macela para a menina Narizinho, apelido de Lúcia, neta de Dona Benta. Era 1920, ano marcado como um divisor de águas na literatura infantil brasileira.
Emília surgiu no texto sem “literatice” de José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), que, desiludido do mundo dos adultos – “bichos sem graça” –, sonhava há algum tempo em fazer um livro onde as crianças pudessem morar.
Criou o Sítio do Picapau Amarelo, um universo que mistura o real e o maravilhoso em uma só realidade literária. Para as crianças, acreditava o escritor, “um livro é todo um mundo”. No mundo de Lobato, a fantasia iluminou a realidade.
Nasceu muda, em A menina do narizinho arrebitado, que, tempos depois e uns capítulos a mais, recebeu o título de Reinações de Narizinho. Foi o doutor Caramujo quem curou a mudez da boneca com uma pílula falante. Emília desembestou a falar no mesmo instante: “Estou com um horrível gosto de sapo na boca!”.
Tinha tanta coisa para contar que falou durante três horas seguidas.
Narizinho, desesperada, achou que o tal doutor devia fazer a boneca vomitar aquela pílula e engolir uma mais fraquinha. Mas Caramujo explicou que aquilo era “fala recolhida”, que não mais podia permanecer entalada.
Assim surge a voz transgressora da personagem que sempre subverte a ordem do mundo adulto no Sítio do Pica-Pau Amarelo, uma sociedade matriarcal, liderada por Dona Benta, uma senhora moderna, liberal e democrata, numa época em que o Brasil era governado por Getúlio Vargas e, no mundo, o fascismo e nazismo ascendiam.
Emília fala por ela, pelas crianças, por Monteiro Lobato – e inventa o verbo “asneirar”. Faz o jogo verbal do escritor, preocupado em levar ao público infantil um texto carregado de oralidade, crítica e ironia.
Nelly Novaes Coelho, professora de literatura infantil da Universidade de São Paulo, em Panorama histórico da literatura infantil e juvenil, explica que Emília aparece como personagem secundária na primeira versão de A menina do narizinho arrebitado.
 “(...) era apenas uma bruxinha de pano que Lúcia levava para todo o canto consigo, mas que nada fazia.” Daí em diante, a bonequinha cheia de reinações ganha cada vez mais posto de porta-voz do escritor paulista, nascido em Taubaté.
Por ser uma boneca de pano, Emília pode cometer impunemente pecados infantis como birra, malcriação, egoísmo, teimosia, tirania e esperteza.
A criaturinha, com sua torneirinha que jorra asneiras, não teme nada, apronta todas, é cheia de vontades, faz o que dá na veneta. Curiosa, sempre lança um olhar poético para as coisas ao redor. Quando leva bronca, finge que não é com ela e sempre tem uma resposta desconcertante.
 “A Emília é infernal”, bem definiu Lobato certa vez. “Quando estou batendo o teclado, ela posta-se ao lado da máquina e quem diz que eu digo o que eu penso?”, indagou.
 
Laura Sandroni, no livro De Lobato a Bojunga, ressalta que Emília é o personagem mais significativo do Sítio do Picapau Amarelo. “Visto por muitos como o alter ego de Lobato, através de quem ele emite os seus pontos de vista, denuncia os absurdos do mundo civilizado, ri da empáfia dos sábios e poderosos.
Sendo uma boneca, embora evolua e vire gente de verdade, ela está livre das obrigações sociais impostas pela educação à criança. Ela pode dizer o que pensa sem nenhum tipo de coerção”, afirma.
É cheia de invencionices. Em A reforma da natureza, inventa o “livro comestível”: “(...) Em vez de impressos em papel de madeira, que só é comestível para o caruncho, eu farei os livros impressos em um papel fabricado de trigo e muito bem temperado. A tinta será estudada pelos químicos — uma tinta que não faça mal para o estômago.
O leitor vai lendo o livro e comendo as folhas; lê uma, rasga-a e come. Quando chega ao fim da leitura, está almoçado ou jantado”. A ideia da boneca representa as ideias de Lobato sobre leitura – ou melhor, leitura prazerosa.
Sua história foi escrita por Visconde de Sabugosa, todo cheio de conhecimento enciclopédico. Em Memórias de Emília, o sabugo de milho aproveita para dizer umas verdades guardadas há tempos sobre a bonequinha: “Emília é uma tirana sem coração. (...)
Também é a criatura mais interesseira do mundo. (...) Só pensa em si, na vidinha dela, nos brinquedos dela”. Certa vez, quando questionada por Visconde que criatura ela era, respondeu em alto e bom som: “Sou a Independência ou Morte”. É Emília quem melhor se define.






























http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=46

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