
A boneca de pano Emília – tagarela,
curiosa e egoísta, também conhecida como Marquesa de Rabicó – nasceu das mãos
de Tia Nastácia.
Com retalhos de uma saia velha, a
cozinheira fez uma bonequinha de corpo desajeitado, com olhos de retrós preto,
sobrancelhas meio fora do lugar e recheio de macela para a menina Narizinho,
apelido de Lúcia, neta de Dona Benta. Era 1920, ano marcado como um divisor de
águas na literatura infantil brasileira.
Emília surgiu no texto sem “literatice” de José Bento
Monteiro Lobato (1882-1948), que, desiludido do mundo dos adultos – “bichos sem
graça” –, sonhava há algum tempo em fazer um livro onde as crianças pudessem
morar.
Criou o Sítio do Picapau Amarelo, um universo que mistura o
real e o maravilhoso em uma só realidade literária. Para as crianças,
acreditava o escritor, “um livro é todo um mundo”. No mundo de Lobato, a
fantasia iluminou a realidade.
Nasceu muda, em A menina do
narizinho arrebitado, que, tempos depois e uns capítulos a mais, recebeu o
título de Reinações de Narizinho. Foi o doutor Caramujo quem curou a mudez da
boneca com uma pílula falante. Emília desembestou a falar no mesmo instante:
“Estou com um horrível gosto de sapo na boca!”.
Tinha tanta coisa para contar que
falou durante três horas seguidas.
Narizinho, desesperada, achou que o tal
doutor devia fazer a boneca vomitar aquela pílula e engolir uma mais fraquinha.
Mas Caramujo explicou que aquilo era “fala recolhida”, que não mais podia
permanecer entalada.
Assim surge a voz transgressora
da personagem que sempre subverte a ordem do mundo adulto no Sítio do Pica-Pau
Amarelo, uma sociedade matriarcal, liderada por Dona Benta, uma senhora
moderna, liberal e democrata, numa época em que o Brasil era governado por Getúlio
Vargas e, no mundo, o fascismo e nazismo ascendiam.
Emília fala por ela, pelas crianças, por Monteiro Lobato – e
inventa o verbo “asneirar”. Faz o jogo verbal do escritor, preocupado em levar
ao público infantil um texto carregado de oralidade, crítica e ironia.
Nelly Novaes Coelho, professora
de literatura infantil da Universidade de São Paulo, em Panorama histórico da
literatura infantil e juvenil, explica que Emília aparece como personagem
secundária na primeira versão de A menina do narizinho arrebitado.
“(...) era apenas uma bruxinha de pano que
Lúcia levava para todo o canto consigo, mas que nada fazia.” Daí em diante, a
bonequinha cheia de reinações ganha cada vez mais posto de porta-voz do escritor
paulista, nascido em Taubaté.
Por ser uma boneca de pano, Emília pode cometer impunemente
pecados infantis como birra, malcriação, egoísmo, teimosia, tirania e
esperteza.
A criaturinha, com sua torneirinha que jorra asneiras, não
teme nada, apronta todas, é cheia de vontades, faz o que dá na veneta. Curiosa,
sempre lança um olhar poético para as coisas ao redor. Quando leva bronca,
finge que não é com ela e sempre tem uma resposta desconcertante.
“A Emília é
infernal”, bem definiu Lobato certa vez. “Quando estou batendo o teclado, ela
posta-se ao lado da máquina e quem diz que eu digo o que eu penso?”, indagou.
Laura Sandroni, no livro De Lobato a Bojunga, ressalta que
Emília é o personagem mais significativo do Sítio do Picapau Amarelo. “Visto
por muitos como o alter ego de Lobato, através de quem ele emite os seus pontos
de vista, denuncia os absurdos do mundo civilizado, ri da empáfia dos sábios e
poderosos.
Sendo uma boneca, embora evolua e vire gente de verdade, ela
está livre das obrigações sociais impostas pela educação à criança. Ela pode
dizer o que pensa sem nenhum tipo de coerção”, afirma.
É cheia de invencionices. Em A
reforma da natureza, inventa o “livro comestível”: “(...) Em vez de impressos
em papel de madeira, que só é comestível para o caruncho, eu farei os livros
impressos em um papel fabricado de trigo e muito bem temperado. A tinta será
estudada pelos químicos — uma tinta que não faça mal para o estômago.
O leitor vai lendo o livro e
comendo as folhas; lê uma, rasga-a e come. Quando chega ao fim da leitura, está
almoçado ou jantado”. A ideia da boneca representa as ideias de Lobato sobre
leitura – ou melhor, leitura prazerosa.
Sua história foi escrita por
Visconde de Sabugosa, todo cheio de conhecimento enciclopédico. Em Memórias de
Emília, o sabugo de milho aproveita para dizer umas verdades guardadas há
tempos sobre a bonequinha: “Emília é uma tirana sem coração. (...)
Também é a criatura mais interesseira do mundo. (...) Só
pensa em si, na vidinha dela, nos brinquedos dela”. Certa vez, quando
questionada por Visconde que criatura ela era, respondeu em alto e bom som:
“Sou a Independência ou Morte”. É Emília quem melhor se define.
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